25 dezembro 2007

Escutatória

(Rubem Alves)

Sempre vejo anunciados cursos de oratória.
Nunca vi anunciado curso de escutatória.
Todo mundo quer aprender a falar.
Ninguém quer aprender a ouvir. Pensei em oferecer um curso de escutatória.
Mas acho que ninguém vai se matricular.

Escutar é complicado e sutil. Diz Alberto Caeiro que "não é bastante não ser cego para ver as árvores e as flores.
É preciso também não ter filosofia nenhuma".

Filosofia é um monte de idéias, dentro da cabeça, sobre como são as coisas.
Para se ver, é preciso que a cabeça esteja vazia. Parafraseio o Alberto Caeiro: "Não é bastante ter ouvidos para ouvir o que é dito; é preciso também que haja silêncio dentro da alma".
Daí a dificuldade: a gente não agüenta ouvir o que o outro diz sem logo dar um palpite melhor, sem misturar o que ele diz com aquilo que a gente tem a dizer.
Como se aquilo que ele diz não fosse digno de descansada consideração e precisasse ser complementado por aquilo que a gente tem a dizer, que é muito melhor.

Nossa incapacidade de ouvir é a manifestação mais constante e sutil de nossa arrogância e vaidade: no fundo, somos os mais bonitos...

Tenho um velho amigo, Jovelino, que se mudou para os Estados Unidos estimulado pela revolução de 64. Contou-me de sua experiência com os índios.
Reunidos os participantes, ninguém fala.
Há um longo, longo silêncio.
(Os pianistas, antes de iniciar o concerto, diante do piano, ficam assentados em silêncio, [...].
Abrindo vazios de silêncio. Expulsando todas as idéias estranhas.). Todos em silêncio, à espera do pensamento essencial. Aí, de repente, alguém fala. Curto. Todos ouvem. Terminada a fala, novo silêncio.
Falar logo em seguida seria um grande desrespeito, pois o outro falou os seus pensamentos, pensamentos que ele julgava essenciais. São-me estranhos.
É preciso tempo para entender o que o outro falou.

Se eu falar logo a seguir, são duas as possibilidades. Primeira: "Fiquei em silêncio só por delicadeza.
Na verdade, não ouvi o que você falou.
Enquanto você falava, eu pensava nas coisas que iria falar quando você terminasse sua (tola) fala.
Falo como se você não tivesse falado". Segunda: "Ouvi o que você falou. Mas isso que você falou como novidade eu já pensei há muito tempo. É coisa velha para mim. Tanto que nem preciso pensar sobre o que você falou".

Em ambos os casos, estou chamando o outro de tolo.
O que é pior que uma bofetada.

O longo silêncio quer dizer: "Estou ponderando cuidadosamente tudo aquilo que você falou".
E assim vai a reunião.

Não basta o silêncio de fora. É preciso silêncio dentro. Ausência de pensamentos. E aí, quando se faz o silêncio dentro, a gente começa a ouvir coisas que não ouvia.

Eu comecei a ouvir.

Fernando Pessoa conhecia a experiência, e se referia a algo que se ouve nos interstícios das palavras, no lugar onde não há palavras.

A música acontece no silêncio. A alma é uma catedral submersa. No fundo do mar - quem faz mergulho sabe - a boca fica fechada. Somos todos olhos e ouvidos.
Aí, livres dos ruídos do falatório e dos saberes da filosofia, ouvimos a melodia que não havia, que de tão linda nos faz chorar.

Para mim, Deus é isto: a beleza que se ouve no silêncio. Daí a importância de saber ouvir os outros: a beleza mora lá também.

Comunhão é quando a beleza do outro e a beleza da gente se juntam num contraponto.

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Que a partir desse dia, nós possamos aprender cada vez mais a ouvir ao invés de falar. Quem sabe assim escutaremos o menino que nasce hoje e vai crescendo dentro de nós.

Um feliz natal!

2 comentários:

Claudia Kahwage disse...

Ola Jota! hoje inesplicavelmente sonhei com você e a sua (nossa) prima Nazaré, associações até que mais ou menos aceitáveis do inconsciente. Dai aproveitando o dia, o mês e o trimestre melancolico das chuvas daqui de Belém do Pará que não param nos mantendo em casa por mais tempo, eu resolvi saber de vc, achei esse blog, aproveito pra mandar um abraço forte e espero que tudo esteja bem com vc, claudia kahwage (claudinha! Putz a Nazaré ainda me chama assim!)

Unknown disse...

não sabia que vc tëm pensamentos/reflexões tão profundas, eu as li, chegam a "doer" quando olho pra dentro de mim. Acho que estou numa pausa grande em minha vida, queria parar, acho que não vou chegar ä lugar algum, mas se eu parar não sei como vou me segurar emocionalmente ou como Deus poderia me segurar. O que vivo hoje são consequencias das minhas escolhas e apesar de muitas vezes meu coração chorar em silêncio, preciso ser forte ou pelo menos parecer. Por vezes fujo da realidade buscando no passado ou nas minhas fantasias motivos para continuar, quem me conhece náo me vê, acho que só Deus sabe quem sou.